Dia de faxina
O corpo pesado se arrastava pela subida da ladeira, resfolegava emitindo sons como grunhidos de um porco. A cada dez passos tinha que parar, para tomar fôlego e reiniciar a dura jornada. Em uma dessas paradas olhou para baixo e visualizou sua barriga, um tanto quanto grande, melhor dizer imensa, desproporcional ao restante do corpo, pequeno, de pernas curtas e arqueadas, como se andasse a cavalo desde o seu nascimento. A barriga, deslizava flácida, por sobre a cintura das calças, quase indo encontrar com seu minúsculo pinto, artefato de seu corpo, que não via há anos, devido ao volume da barriga. Nem mesmo no espelho ele conseguia, a não ser suspendendo bem aquela massa de carnes, constituída de gordura na sua maioria. Um ritual seguia-se entre essas paradas; da sacola de plástico onde carregava seus objetos pessoais, puxava uma toalhinha, cujo aspecto e odor denotavam uma sujeira, impregnada, entranhada há tempos, já que ele não permitia que a mulher a lavasse muito, apregoando que com as lavadas o seu “cheirinho” particular, sumiria e não teria o seu toque pessoal, ou seja, características de um ser não adepto da limpeza. Secava o suor que gotejava e escorria da cara e a seguir dava uma secadinha nas axilas, e retornava para a cara, não se importando com aquele bodum, resultado de meses sem uma boa lavada e muito menos o uso de um desodorante. Logo após, este ritual peculiar, jogava a toalhinha, sobre o ombro, para uma próxima utilizada.
Em casa a mulher, sentada em uma poltrona em frente à TV, divagava, sem prestar atenção ao que passava na TV. Tinha aproximadamente cinqüenta anos, corpo com curvas arredondadas, estatura pequena, completando um conjunto delicado. Olhos claros e cabelos curtos, ondulados. Não gostava de perfume, mas seu corpo exalava um cheiro agradável de banho recém tomado, o que a fez lembrar de seu excelentíssimo esposo, que odiava um banho. Quando, nos momentos extremos, quando não suportava mais o cheiro, que ele distribuía pela casa, ela gritava e praticamente o empurrava para o chuveiro,e sua expressão era de um boi indo para o abate, tal sua aversão ao banho. E mesmo de banho tomado, permanecia cheirando mal, era uma marca registrada. Sexo para ela, já estava fora de cogitação, a não ser que descarregasse nele, um balde de creolina pura, e o fizesse comer quilos de naftalina, mas isso poderia matá-lo, porém não tinha tendências homicidas, muito menos pretendia passar anos em um presídio, por matar um ser fedorento e infecto. Se bem que bastaria os jurados passarem duas horas num aposento com ele, que seria absolvida por unanimidade. Mas não queria arriscar, tinha outra solução, que vinha planejando a algum tempo, com a qual sairia de mãos limpas. Com certo requinte de crueldade, e um sorriso matreiro emoldurando seu rosto, iniciou os primeiros passos do seu plano.
Ele já estava quase perto de casa. Alguns metros e se esbaldaria no sofá, enquanto o almoço não estivesse pronto. Claro que não precisaria levantar seu traseiro, pois ela lhe traria o almoço, enquanto dava uma beliscada no horário esportivo, pra ver como ia seu time. Sem contar a cerveja, que estaria geladinha lhe esperando, como todos os dias. Após devorar animalescamente a comida e a cerveja, num trago só, largaria, prato e copo no chão, se ajeitaria ali mesmo e puxaria um ronco; o descanso do guerreiro!
Ao adentrar a porta, viu a mulher placidamente sentada, e estranhou, porque devia estar na cozinha. Será que o almoço já estava pronto? Mas não sentiu nenhum cheiro de comida. Caminhou dois passos e tropeçou em algo, olhou para baixo e viu uma mala, enorme e estufada de tão cheia. Olhou para a mulher, que lhe olhava com um sorrisinho estranho grudado no rosto. Surpreso perguntou: ué vai viajar? A mulher calmamente respondeu sem desfazer o sorriso: eu não, você vai! Já desconfiado, devolveu: pra onde vou? Pra bem longe de mim, ela respondeu sem se alterar. Indiferente, ele dirigiu-se ao sofá e sentou-se. Lentamente ela se levantou, arrastou a mala com certo esforço, abriu a porta, e usando toda a sua força, atirou a mala, porta a fora, que estabacou-se na calçada, chamando a atenção da vizinhança. Assustado ele correu para a rua, até a mala, que ao ser atirada, abriu-se, espalhando a roupa dele e mais uma porção enorme de sabonetes, desodorantes, toalhas limpas, pastas de dentes e mais outro tanto de materiais de higiene. Pasmo ele virou-se para a entrada da casa e viu a porta fechada, correu até ela, tentou abrir, estava trancada, vasculhou os bolsos, nervoso a procura das chaves e lembrou-se que estavam em cima da mesa. Berrou como um louco esmurrou a porta e nada aconteceu, o silêncio era total vindo de dentro da casa.
Lá dentro, ela estava confortavelmente sentada na poltrona, assistindo seu programa favorito na TV. Sua vida agora estava passada a limpo, literalmente.
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