quarta-feira, 9 de julho de 2008




Anjos sem asas


Hoje acordei. Como sempre acordo, de bem com a vida, em paz comigo mesma, mas ao ler o jornal local, tudo mudou. Meu coração se fez pequeno, me senti covarde, impotente. Percebi que todo dia fechamos as portas de nossas casas e de nosso comprometimento, para a realidade, feia triste, que nos cerca diariamente. Fazemos de conta que os milhares de meninas e meninos que nos rodeiam, vive um conto de fadas. Que o dia a dia deles, se assemelha aos de nossos filhos, que estão sempre protegidos, no nosso Pátrio Poder, no nosso amor. Ignoramos deliberadamente, que a cada segundo, um menino morre ou mata pelas drogas. Que nesse mesmo segundo, uma menina se prostitui, deixa seu corpo invadir, por um vil indivíduo que contribui miseravelmente para essa estatística crescer. Permanecemos guarnecidos de ilusão, e escondemos de nós mesmos, que crianças, anjos desprotegidos, ficam a mercê das retaliações a que são submetidos a todo instante. Às vezes fingimos que nos preocupamos, mas tudo não passa de mera aparência. Não deixamos tal sentimento chegar ao nosso coração. Ele fica na superfície de nossa existência, e logo retornamos, à nossa vidinha tranqüila, onde nada nos atinge. A hipocrisia das falsas batalhas que muitos pregam em nome dos bons costumes, se faz presente. Deixamos para amanhã a tentativa de fazer algo, pelos anjos destruídos e esquecidos, que esperam que a realidade deles se modifique. Que passem a ser crianças novamente, que as drogas sejam trocadas por brinquedos e que, sua mutilação constante, seja trocada por brincadeiras de criança. Faço infelizmente parte deste contingente, alienado que dorme todo o dia feliz e acorda da mesma forma. Escondi minha consciência no meu medo de que minha vida seja abalada, pela realidade, para qual fecho meus olhos e meu coração. Fecho á sete cadeados minha casa, para não ser perturbada com essas mazelas da vida. Fecho minha boca, quando deveria gritar, protestar para isso mudar. Fecho minhas mãos quando deveria estendê-las para os corpos pequenos e frágeis que se despedaçam todos os dias. Fecho meus sentimentos e assim afasto o perigo que penso que esses anjos representam. Fecho minha vida, e finjo ser feliz todos os dias, mascarando que tudo é cor de rosa e que o arco-íris fica na próxima esquina.
E quando faço isso inevitavélmente, fecho todas as esperanças de todo anjo que vai ser despedaçado e esmagado pela minha indiferença. E assim a cada instante um anjo vai perder as suas asas e bem ao meu lado.








Série Especial
A pedra avança sobre a infância
A epidemia do crack

O crack se aninhou entre os brinquedos e os personagens de desenho animado que enfeitam a ala infantil do Hospital Psiquiátrico São Pedro, na Capital. A maioria das crianças internadas nos 10 leitos do serviço, especializado em menores de 12 anos, é de viciados na pedra. Há dois anos, a droga respondia por 10% das internações infantis. O índice já passa de 60% - o equivalente a mais de 70 crianças atendidas ao ano.O São Pedro virou termômetro do avanço do crack sobre a infância gaúcha. Na semana passada, a instituição recebia pela segunda vez um dependente de oito anos, que costumava ganhar droga da mãe quando reclamava de fome. A primeira internação dele havia sido aos sete. Outro paciente, de 11 anos, estava na quinta internação desde 2005 e exibia um histórico de roubos e fugas de albergues para perseguir a pedra. O processo acelerado de infantilização do crack assombra conselheiros tutelares, profissionais da saúde e autoridades da segurança pública.- O crack tem uma capacidade destruidora enorme em qualquer pessoa, mas em uma criança ele é uma catástrofe. O que testemunhamos me faz temer pelo futuro dessa geração - alerta Jacinto Saint Pastous Godoy, diretor da Clínica São José.Os danos neurológicos são severos quando o crack age sobre um organismo em formação. No caso de um morador de Bento Gonçalves que começou a fumar aos oito anos e hoje tem 17, os efeitos se traduziram na perda da capacidade de articular palavras e na lentidão extrema da fala.- Fiquei muito seqüelado. Tenho um problema na cabeça que não me deixa aprender. Nem ler eu sei - conta, sílaba por sílaba.A queda no vício arrasa com a infância. No São Pedro, no quarto guarnecido por uma cortina enfeitada com cães, uma menina de 11 anos da zona sul da Capital precisa esconder o rosto na blusa para encontrar coragem de falar sobre a droga.- Um amigo ofereceu, e fumei com 10 anos. Quem usa não pensa em outra coisa. Vendi roupa minha para comprar - diz ela, filha de papeleiros, com sete irmãos e três internações num ano.Em uma sala ao lado, excitado com os brinquedos na estante, do qual não afasta os olhos, um menino de sete anos garante que nunca fumou, depois que foi só uma vez e afinal reconhece o uso:- Não gosto de pedra, porque morre na hora.Ele vivia na rua com a mãe, também usuária e procurada por tráfico, segundo os registros do hospital. Contou que experimentou a pedra pelas mãos de um amigo de 11 anos que conheceu na rua e a quem acabou reencontrando na ala infantil do São Pedro. O mais velho foi internado por ter sido apanhado usando e vendendo crack. Estava habituado a presenciar a mãe fumando.- Depois que a pessoa usa crack pela primeira vez, tenta parar, mas não consegue. Ele vai direto para o cérebro - relata a criança de 11 anos.Famílias esfareladas como a dos dois amigos são a rotina no setor infantil do São Pedro. A técnica em enfermagem Patrícia Barata Moraes conta que os pequenos dependentes chegam agressivos e desnutridos, mas mudam rápido:- Depois de duas semanas, viram crianças de novo. Não querem mais ir embora. Aqui tem comida, carinho, adulto cuidando deles e limites, coisas que eles nunca tiveram em casa.É nos bairros de periferia que as crianças do crack estão sendo produzidas em série. A pedra é o motor que, aos 10 anos, pôs fim antecipado à infância de um menino de uma vila miserável da zona norte da Capital e transformou-o em um problema social de perspectivas sombrias. Ele vem de uma família de 10 irmãos. A mãe é papeleira. O pai está preso por tentar estuprar uma das filhas.- Dei um pega só e não consegui mais parar. Comecei a roubar, mas só de burguês. Entrava nas casas e levava tudo. Enriqueci o patrão (o traficante) enquanto me afundava - constata.O menino tem o rosto deformado por uma surra. Em três anos sob o domínio do crack, varou semanas na rua, deixou a escola, foi pedinte, furtou e viu um amigo dependente ser morto a tiros. Saiu das ruas três meses atrás, quando furtou uma máquina de lavagem de carros. Na loucura da necessidade, voltou horas depois ao lava-jato. Foi apreendido pela polícia e internado. Agora, sonha:- Quero fazer tratamento, chegar à minha casa, sentar e conversar direitinho com a minha família.( itamar.melo@zerohora.com.br )( patricia.rocha@zerohora.com.br )